quarta-feira, 11 de junho de 2008

O 10 de Junho, o chefe de estado e a sua memória

Um Texto de RUI FERREIRA

Aníbal Cavaco Silva, cumprindo o seu turno como chefe de estado, veio, neste dia 10 do mês de Junho, contribuir, uma vez mais, para motivar os seus concidadãos para a acção cívica e luta política.

Já como testa do poder executivo, Aníbal Cavaco Silva (ACS) havia motivado uma geração de alunos do secundário e do superior (sempre tão distraídos com rituais académicos e roques no rio ou noutros sítios) a vir para a rua gritar, nesse caso contra os seus visionários (e visionária) ministros da educação e respectivas políticas de acesso ao financiamento do ensino superior. Daquele impulso motivador ficou, como se sabe, a denominada “geração rasca”, uma das mais politizadas depois do 25 de Abril porque lhe foi mostrado que o conceito de aparato repressor do estado não é uma mera abstracção tardo-marxista; é o que emerge do processo de negociações, mesmo em democracia, quando a tutela se aborrece com a conversa.

Agora, ACS veio informar-nos que comemora (?) o “dia da raça”(!). A mim, o termo “raça” provoca-me a evocação das chegas de bois das regiões do Barroso ou de Miranda do Douro. Aparentemente, as chegas são muito úteis para aprimorar as respectivas raças e para melhorar as também respectivas postas, vianda a servir em sangue com acompanhamento a gosto. Aliás, a metáfora do sangue é útil: toda a proposta eugénica acaba em sangue, literalmente, e no prato, no caso bovino (que, de resto, tendo a dispensar) e, o que é infinitamente mais triste, também literalmente no caso humano, como atestam o Shoa, a Nakba, o genocídio Arménio,… a lista seria infindável.

O solarengo feriado do chefe de estado obriga-nos a colocar algumas questões e a proceder a uma reflexão. ACS é racista?… nada leva a crer, concedo. ACS é fascista?… espero bem que não. ACS tem automatismos psíquicos que, sob pressão, o levam a recuperar o vocabulário e os conceitos aprendidos nos bancos da escola sob o crucifixo e o retrato vigilante do senhor de Santa Comba? aparentemente sim, e aqui temos material para reflectir, especialmente porque as suas funções de estado o devem colocar frequentemente sob pressão.

Lembremo-nos que, se a memória é a matéria-prima da história (Jacques le Goff), a matéria-prima da memória são as micro-narrativas que se constituem quando se interpreta e se racionaliza a experiência. Se é evidente que a construção de qualquer narrativa histórica está sujeita a condicionamentos, desde logo por parte poder político, não é menos verdade que o processo de constituição da memória colectiva está sujeito a fortíssimas pressões. Este último é um processo que se desenrola na linguagem e que, portanto, é permeável a influxos, nomeadamente aqueles provindos da superstructura de um dado modo de organização social e cujo propósito ideológico é o de garantirem a subsistência desse mesmo modo de organização. Um exemplo concreto é precisamente a ficção engendrada pela máquina de propaganda do regime salazarista quanto à “raça portuguesa”, paternalismo racista, com vago enquadramento teórico na ideia de V Império, que leva, ainda hoje e apesar de toada a documentação em contrário, a que alguns portugueses pensem que o colonialismo português foi “mais brando” e que procurava uma comunhão de culturas.

Não sendo ACS conscientemente fascista ou colonialista, o seu lapso mostrou a eficácia do aparato de propaganda salazarista. A construção da memória faz-se, portanto, todos os dias e em conflito com ficções impostas, porque o passado não existe em si. E como a construção do aparato da memória social domina todos os problemas da evolução humana (André Leroi-Gourham), o futuro que queremos tem que ser desenhado hoje. Trabalhemos pois para salvaguardar a memória da resistência a para denunciar os aparatos fascistas que medraram durante o auto-denominado Estado-Novo. Muito trabalho ainda para o Movimento Cívico Não Apaguem a Memória.


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